A elevação do nível do mar em todo o Brasil é uma realidade. As cidades litorâneas e os Poderes Públicos precisam se adaptar e se preparar para enfrentar este problema com seriedade. Para se ter uma ideia, um levantamento feito pelo MapBiomas aponta que o Brasil perdeu cerca de 15% de seu território ocupado por praias e dunas como resultado do avanço do mar sobre o litoral. Foi possível observar a perda de faixas de areia entre 1985 e 2021, o que resultou em um elevado número de obras de proteção costeira em todo país.

O avanço do mar sobre a costa continental é um fator que preocupa regiões que dependem de zonas litorâneas, seja para o comércio, turismo e, principalmente, para o estabelecimento de propriedades habitáveis. O Brasil, país de proporções continentais, com um litoral que se estende por 7.491 km (16º maior do mundo), tem grande parte de suas regiões urbanas sob risco. Cidades como Porto Alegre, Santos, Salvador, Recife, Fortaleza e São Luís são as mais ameaçadas pela escalada do nível do mar, de acordo com estudo do Climate Central, ONG formada por cientistas e jornalistas de New Jersey, que analisa e informa sobre a ciência do clima. A pesquisa focou nos locais mais vulneráveis a sofrerem “inundações sem precedentes” caso não sejam adotadas políticas e medidas de mitigação.

Esse fenômeno  é uma consequência direta das mudanças climáticas provocadas pelo aquecimento global. Segundo o relatório divulgado pelo Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC), órgão das Nações Unidas, a ação humana é considerada a principal causa para o crescimento desse fenômeno. O aumento do nível dos oceanos e a crescente frequência de eventos climáticos extremos têm gerado uma escalada nos custos dos seguros imobiliários, com alguns casos tornando-se simplesmente inviáveis para qualquer operação.

Alexandre Schubert, vice-presidente da Associação Empresas do Mercado Imobiliário do Espírito Santo (ADEMI-ES), explica como o mercado de imóveis pode ser afetado pela erosão litorânea. “O avanço da linha do mar afeta o mercado imobiliário de duas formas. Os locais onde estão implantadas ocupações urbanas, cidades e construções à beira-mar ficam ameaçadas. Normalmente, essas áreas são regiões de maior valor agregado, ocasionando em um impacto de valor econômico significativo. Além disso, o problema impede a expansão urbana, já que a degradação da costa marítima coloca em risco qualquer implantação de novos bairros e instalações imobiliárias nas porções de terra afetadas”.

Um caso que teve repercussão nacional foi em Balneário Camboriú (SC). Na cidade, após menos de dois anos da conclusão das obras de alargamento da Praia Central, um trecho de 70 metros foi “engolido” pelo mar. Para o engenheiro especialista em obras de defesa costeira e diretor da Ocean Protections, Marco Lyra, é imprescindível que o Poder Público nas esferas federal, estadual e municipal façam um planejamento estratégico para enfrentar os problemas das enchentes e inundações que já estão ocorrendo nas cidades costeiras.

“A economia do mar é muito forte, com investimentos que vão da microeconomia à macroeconomia. O setor da construção civil e o mercado imobiliário estão inseridos na macroeconomia dessas áreas. O planejamento estratégico para essas áreas a médio e a longo prazo deve ser direcionado para garantir a sustentabilidade do litoral”, pontua o especialista. 

Marco Lyra aponta ainda que os riscos para construção e aquisição de propriedades em áreas urbanizadas com forte processo erosivo é o da desvalorização do imóvel. “É importante fazer uma avaliação criteriosa, para ponderar o custo-benefício do investimento, evitando problemas futuros”, afirma.

Um forte exemplo dos possíveis problemas iminentes aconteceu em Jaboatão dos Guararapes (PE). Empreendimentos de médio e alto padrão, incluindo estabelecimentos comerciais, enfrentam a devastação consequente do avanço do mar. Especialistas destacam não apenas os prejuízos financeiros resultantes da destruição, mas também que o custo da reconstrução é consideravelmente elevado, exigindo uma abordagem meticulosa que considere as complexidades do ambiente natural.

Alagoas, o paraíso das águas

A capital alagoana é conhecida pelas praias de águas cristalinas e temperaturas agradáveis. No entanto, a mesma água que atrai turistas do mundo todo tem causado problemas e insegurança a moradores de Maceió e das cidades litorâneas próximas à capital, em suas porções norte e sul, caracterizadas como grandes vetores de crescimento imobiliário.

Praias com potencial turístico considerável têm sido bastante afetadas pela elevação gradativa do nível dos oceanos. Um estudo realizado pelo engenheiro especialista em obras de defesa costeira, Marco Lyra, em parceria com a empresa atuante na restauração sustentável de praias, Ocean Protections, elaborou uma lista com as 15 praias alagoanas mais suscetíveis aos danos provocados por esse fenômeno. A lista conta com 10 municípios do estado, incluindo a capital.

Piaçabuçu – Praia do Pontal do Peba

Coruripe – Praia do Pontal

Barra de São Miguel – Praia de Barra Mar

Marechal Deodoro – Praia do Saco e da Barra Nova

Maceió – Praia de Riacho Doce, Garça Torta e Ipioca

Barra de Santo Antônio – Ilha da Croa

Passo de Camaragibe – Praia do Marceneiro

Porto de Pedras – Praia do Patacho

Japaratinga – Praia de Barreiras de Boqueirão

Maragogi – Praia de Barra Grande e Burgalhau

Para o agente de redução de risco da Defesa Civil de Maceió, Ramon Alves, o ser humano intensificou um processo cíclico da superfície terrestre por conta da intensa degradação ambiental. “Os principais fatores agravantes são a intervenção antrópica que se reflete no aumento de construções ocasionando na retirada da vegetação natural (restinga) que auxilia na retenção de sedimentos.  Além disso, as mudanças climáticas desempenham um papel significativo, potencialmente alterando padrões de correntes marítimas, aumentando a irregularidade das precipitações e intensificando a frequência de tempestades de vento”, diz o agente da Defesa Civil. 

As consequências da degradação ambiental intensa podem ser observadas atualmente, com a destruição de propriedades à beira-mar e com a inviabilização da construção de possíveis novos empreendimentos.

Na foz do Rio dos Paus, na divisa entre Maragogi e o estado de Pernambuco, observa-se um intenso processo de erosão fluviomarinha, especialmente durante a quadra chuvosa. Nesse local, onde o mar já avançou mais de 15 metros em direção ao continente, colocando em perigo pessoas e propriedades, existe uma urgência evidente na implementação de medidas de defesa costeira.

Especialistas apontam que as praias do Pontal do Peba e de Maragogi precisam de obras. Na foz do rio São Francisco, a praia do Peba enfrenta um significativo processo erosivo. O avanço do mar resultou na intrusão salina, afetando consideravelmente o abastecimento de água em áreas urbanas de Piaçabuçu, assim como em alguns povoados localizados às margens do rio.

Municípios como Marechal Deodoro, Passo de Camaragibe, Capela e Piaçabuçu estão na lista de cidades mais afetadas pelo aumento do nível do mar ou inundações costeiras nos próximos 30 anos – Projeção do Climate Central. Na cidade de Maceió, regiões banhadas pelo mar e pela Lagoa Mundaú vão sofrer algumas consequências significativas. 

A inundação pode chegar próximo ao Estádio Rei Pelé, no bairro do Trapiche da Barra, cobrir toda a região do Pontal da Barra e tomar conta das imediações das Piscinas Naturais da Pajuçara. Além de causar uma destruição intensa na porção do litoral sul da cidade, cobrindo parcialmente os empreendimentos localizados próximos às praias da Ponta Verde e da Jatiúca, onde as construções se encontram próximas à faixa de areia.

O engenheiro Marco Lyra salienta que existem várias alternativas para obras de engenharia costeira que podem ser utilizadas para proteção das praias. “Em Alagoas, temos bons exemplos de dissipadores de energia de ondas construídos desde 2003 para proteção costeira, cujos resultados positivos, indicam a necessidade de expandir a experiência para outras praias”, ele cita o exemplo de uma instalação em Paripueira, caso inédito a nível internacional. “Após três anos da construção do Dissipador de Energia Bagwall, na praia de Costa Brava, ocorreu o alargamento de 100 metros da faixa de areia, a recuperação da vegetação de restinga e da fauna e a formação natural do campo de dunas. A praia natural está recuperada”, ressalta.

Maceió, uma cidade desenfreada

Uma das principais consequência do aumento do nível dos oceanos em Alagoas está justamente relacionada ao estabelecimento de empreendimentos imobiliários muito próximos à faixa de areia, o que os torna mais suscetíveis a uma possível destruição. O professor da Universidade Federal de Alagoas, mestre em Oceanografia Biológica e graduado em Ciências Biológicas, Gabriel Le Campion, cita um exemplo de como as construções da orla marítima deveriam ter sido executadas. Ele explica que nos últimos anos não houve um planejamento para estabelecer construções na costa marítima, além de que a ausência de plano diretor elaborado por especialistas prejudicou ainda mais a região.

“Olhe o exemplo de como se deve construir em faixa litorânea. O caso da Pajuçara. Essas construções na praia se iniciaram com uma vila de pescadores, eles respeitaram a faixa de domínio marinho, as habitações foram estabelecidas a mais de 300 m da orla. Já na Ponta Verde, Jatiúca e Cruz das Almas isso não ocorreu. Ao contrário, avançaram sobre a faixa de domínio marinho. Paga-se então o preço”, afirma Le Campion.

A carência de areia suficiente para a recomposição da praia faz com que alternativas remediadoras sejam tomadas, mas nem sempre a solução é tão eficiente e duradoura. A ocupação desenfreada e sem planejamento do litoral alagoano tem trazido consequências diretas para a população que reside em empreendimentos pé na areia, como na região do bairro de Jacarecica, onde já existem vários residenciais desse tipo. Para Beatriz Lins, funcionária pública federal e moradora da área, a comodidade de estar perto do mar é um ponto positivo, mas existe também a preocupação com a proximidade da praia.

“Tenho receio do avanço do mar, sim. Por isso, é importante a moradia ter um bom recuo”, disse a servidora.

Nas regiões de Riacho Doce e Garça Torta, as barreiras de areia na praia não parecem ser suficientes para conter o avanço marítimo. A maré atinge os muros de imóveis e derruba parte de estruturas próximas à praia. Para Titio, como é conhecido o dono de um bar popular no bairro da Garça Torta há 45 anos, é possível observar a destruição de muros e a erosão frequente da costa quando o mar começa a subir de nível. Ele classifica o problema como muito grave.

“Eu vejo queda no movimento com a derrubada de alguns muros (pelo avanço do mar) que os proprietários não reformam. A tendência é ficar cada vez mais complicado a cada maré alta. Antes as pessoas tinham medo da maré de março, que agora ocorre todos os meses”, afirma Titio, destacando que “do jeito que está indo, é questão de poucos anos para as construções da Praia da Sereia e de Guaxuma desaparecerem”, conclui.

Combate à erosão em AL

Planejando uma possível contenção desse avanço, a prefeitura de Maceió, por meio da Secretaria Municipal de Infraestrutura (Seminfra), tem optado pela construção de muros de concreto maciços e pré-moldados. Os blocos, que pesam mais de duas toneladas, foram implantados a partir de uma tecnologia holandesa e são considerados uma alternativa para tentar solucionar o avanço da erosão nas regiões litorâneas do Pontal da Barra (ainda em andamento), em dois pontos da Jatiúca, na Praia do Sobral e na Praia de Jacarecica. “Algumas tecnologias estão surgindo, mas não sei se são aplicáveis em todos os casos. A maioria do que existe é paliativa e muito cara. O que se deve fazer é prevenir, pois a cura é cara e nem sempre eficaz”, ressalta o professor Gabriel Le Campion.

Para Marcelo Daniel, presidente do Instituto Brasileiro de Avaliação e Perícias de Engenharia em Alagoas (Ibape-AL), é necessário saber executar construções de empreendimentos conforme os limites de funcionamento dos ciclos da maré. Ele pontua que o avanço do mar sobre a costa não é um fator local e, sim, proveniente de forças cíclicas que sempre irão ocorrer, seja mais ou menos intenso.

“É comum o aumento dos casos de erosão costeira nesses períodos de maiores amplitudes de maré em março e setembro. Especialmente quando ocorrem juntamente as marés meteorológicas e ressacas marinhas (aumento atípico do nível do mar). O que se tem de fazer é saber como aproveitar a melhor condição, respeitando o mar e não querer barrar os ciclos marítimos com construções que avançam e desprotegem as vegetações e formações naturais”, elucida Marcelo.

A costa alagoana é suscetível a processos erosivos devido à falta de sedimento. A areia das praias alagoanas são facilmente transportadas com o avanço do mar. Essa condição tem se agravado por conta das mudanças climáticas que ocasionam a elevação do nível dos oceanos e o fenômeno conhecido por retrogradação litorânea, ou seja, a diminuição do litoral. Como explica Ricardo César, diretor do Gerenciamento Costeiro (Gerco) do Instituto do Meio Ambiente (IMA).

“O fenômeno de erosão costeira é incidente no nosso litoral há muito tempo. Isso se deve principalmente ao déficit de sedimento para a formação de praias. Há um fenômeno chamado de ‘deriva litorânea’ em que o mar retira essa areia do continente. Como nós não temos rio com aporte de sedimento, essa areia vai saindo por meio de um vetor paralelo. Outro fator são as mudanças climáticas que estão ocorrendo. Temos climas mais intensos, tempestades, ventos, ondas e toda essa energia também dissipa na costa, agravando também o processo de erosão”, destaca o diretor do Gerco.

Dessa maneira, proprieda­des, como casas, bares e até mesmo empreendimentos imobiliários têm sido afetados frequentemente pelo “encurtamento” da faixa de areia, fazendo com que o mar avance sobre a orla e tome conta das regiões habitadas, erodindo a encosta de praias movimentadas.

Ricardo afirma que a percepção de erosão na costa alagoana já existe há bastante tempo. A queda do Gogó da Ema é um dos exemplos mais marcantes do processo de avanço marítimo e a sua relação com a erosão da costa. Para o diretor do Gerco, só foi possível ter uma visão mais precisa da deterioração do litoral no começo da década de 80, com as ocupações e as casas de veraneio à beira-mar, das quais muitas já foram destruídas pelo avanço do mar.

Consequências para o mercado imobiliário nacional

O aumento do perigo para os empreendimentos à beira-mar se agravou ainda mais com a aprovação da proposta de Emenda Constitucional que deliberou o repasse dos terrenos da marinha, em poder da União, para os estados e municípios. A emenda aprovada pela Câmara dos Deputados, proposta por Alceu Moreira (MDB-RS), dificulta a fiscalização de novas construções à beira-mar e aumenta a inconsequência de construtoras que comandam os processos de especulação imobiliária.

A ameaça direta às estruturas das cidades, povoamentos e instalações pelo aumento do nível relativo do mar compromete o bem-estar socioeconômico e a locomoção em cidades localizadas em regiões costeiras. O processo de degradação na infraestrutura do espaço litorâneo provoca significativas perdas para o mercado de imóveis e aumenta drasticamente a sensação de insegurança dos habitantes de regiões com essa característica. Esses fatores resultam em perdas econômicas muito expressivas e na desvalorização dos espaços costeiros, muito importantes para o mercado de imóveis.

No Rio de Janeiro, nem mesmo os braços abertos do Cristo Redentor puderam conter o avanço das ondas sobre a costa da região. No dia 14 de agosto, uma ressaca marítima provocou a invasão do mar na Avenida Delfim Moreira, no bairro do Leblon, o mais caro da cidade. A pista teve que ser interditada e Agentes da Companhia Municipal de Limpeza Urbana (Comlurb) removeram a areia do local. O problema não parou por aí, um dia antes da ocasião, um idoso de 75 anos veio a óbito após ser arrastado por uma onda na praia do Leme, também na Zona Sul. Ele chegou a receber atendimento médico, porém não resistiu. A Marinha do Brasil havia emitido um alerta sobre a ressaca no litoral do Rio de Janeiro no dia 12 do mesmo mês.

O problema se estende por todo o Brasil. Conforme o estudo citado na Conferência sobre Mudanças Climáticas das Organizações das Nações Unidas (COP 25), o avanço do mar irá afetar diretamente o território de 22 cidades no estado de Santa Catarina até 2050. Os impactos dessas mudanças já podem ser constatados na desvalorização imobiliária progressiva que vem ocorrendo nas regiões litorâneas do estado. De acordo com informações do Creci-SP, independente do imóvel ser novo ou antigo, a desvalorização vai acontecer, onde o preço final pode cair em até 40%.

Alexandre Schubert, vice-presidente da ADEMI-ES, reforça que a entidade opera em conjunto com os órgãos públicos a fim de conter a erosão provocada pelo avanço do mar no estado do Espírito Santo. “A ADEMI sempre atua nos concelhos de meio ambiente do município. O combate à erosão na orla litorânea, seja de maneira corretiva ou preventiva, é uma função que pertence ao Estado, por meio de ações municipais, estaduais ou federais, fugindo do alcance da iniciativa privada. O que fazemos é identificar os pontos que podem ocorrer erosões e levar para o Instituto Estadual de Meio Ambiente (IEMA) para que sejam elaborados projetos de contenção e de prevenção”, menciona o vice-presidente da ADEMI-ES.